terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Uma das pessoas que mais admiro no nosso país: - O Dr Fernando Nobre(AMI)_ um excerto do seu bolg.

Regressei do Zimbabué dia 20 deste mês. Questões pessoais, saúde de uma das minhas filhas, impediram-me de escrever este texto mais cedo.
Como tudo na vida, a História deste país nunca foi preta ou branca, sempre cinzenta...A tragédia que assola este país (desestruturação do Estado, inflação inimaginável superior a 300 milhões de % em 2008, ditadura, fome, SIDA, cólera, desemprego massivo, desesperança tremenda…) é o resultado de uma colonização e descolonização desastrosas, de uma falta de bom senso gritante nas relações políticas e pessoais entre o país e a sua ex -“potência” colonial, e vice-versa, e de uma desgovernação tremenda por parte de uma liderança africana que teme o seu futuro caso tenha que deixar a cadeira do aparente poder…
Numa visão panorâmica sucinta da sua História mais recente, e por isso sem revisitar a sua pré-história (nem a possível origem dos hominídeos…) nem a história dos seus reinos pré-coloniais, bastará relembrar meia dúzia de factos:
- Cecil Rhodes, ao ocupar o que são hoje a Zâmbia e o Zimbabué (depois Rodésia e mais tarde Rodésia do Norte/Zâmbia e do Sul/Zimbabué) impediu a concretização do sonho português, o bem conhecido “Mapa Cor-de-Rosa”, que consistia em juntar numa faixa, do Atlântico ao Índico, Angola a Moçambique. Este facto, no imediato início do reino de Dom Carlos, terá contribuído para o fim da Monarquia em Portugal, sem culpa nenhuma do Rei Dom Carlos, diga-se de passagem.
- Sob mandato do Reino Unido, em 1961, foi criada uma constituição que favorecia completamente os brancos no poder na Rodésia do Sul (a Rodésia do Norte tornou-se independente com o nome de Zâmbia).
- Em 1965 o poder branco, liderado por Ian Smith, declara unilateralmente a independência. Nasce então a nova Rodésia, branca e racista, não reconhecida pelo Reino Unido e pela Comunidade Internacional, os quais exigiam mais direitos para a população negra.
- Em 1979 ocorrem finalmente eleições livres, após um período de sanções das Nações Unidas e de guerrilha, e nasce o Zimbabué, declarado independente em 1980, no seio da Commonwelth, com Robert Mugabe como Primeiro-Ministro. O mesmo torna-se Presidente em 1987 e, desde então, lá se mantém.
- O caos começa a instalar-se no país no ano 2000 quando Mugabe começa a sua campanha de redistribuição das terras. Essa campanha, que tinha a sua razão de ser (até aí uma ínfima minoria de agricultores brancos continuava a deter a grande maioria das terras agrícolas) foi infelizmente conduzida da pior maneira por parte de todas os interessados (governos do Zimbabué e do Reino Unido e agricultores brancos) que não souberam defender nem salvaguardar os seus “legítimos”, “justos” e “éticos” interesses nem salvaguardar os superiores interesses do país e das suas populações. Faltou-lhes um De Klerk e um Mandela e alguém no Reino Unido que conhecesse África, tivesse tacto e sensibilidade e soubesse não derramar óleo no fogo, servindo de elemento moderador e conciliador…
- Podia-se e devia-se ter feito, se bem negociada, uma reforma agrária com bom senso, gradual, com cabeça tronco e membros, com adequada e atempada formação dos agricultores negros, até aí, diga-se em abono da verdade, espoliados das melhores terras do país…
- Infelizmente para o povo do Zimbabué, todas as partes em causa, quando era necessário calma, racionalidade, sangue frio e interesse de Estado, reagiram sobretudo com emoção, egoísmo, ambições, por vezes turvas, e ultrapassados e infundados argumentos históricos…
O resultado está à vista: um profundíssimo descalabro que, como sempre, gravemente penalizou um povo inocente. Lá diz um provérbio africano: “Quando dois elefantes andam à bulha, quem se lixa é o capim…”. Assim foi, continua e continuará a ser... A desastrada reforma agrária levada a cabo só serviu a uma classe política e militar altamente corrupta que se apropriou das terras sem nada produzir… e exilou muitos agricultores brancos que partiram para a Austrália, Nova Zelândia, Moçambique, África do Sul, etc.
Hoje, vive-se uma situação económica e social inimaginável: numa população de 11 a 12 milhões de pessoas, cinco milhões vivem da ajuda alimentar das Nações Unidas, quatro milhões são emigrantes nos países vizinhos (África do Sul, Botswana, Moçambique, Zâmbia e …) para sobreviverem e permitir o sustento dos seus familiares …
Em termos cambiais, apenas três exemplos: - no ano 2008 foram tirados vinte zeros às notas… - dia 17 deste mês foram lançadas as notas de triliões de dólares do Zimbabué: no dia do lançamento, dia 17, a nota de 100 triliões (um trilião = um milhão de milhão) “valia” 1.000 USD para dois dias depois, dia 19, já só “valer” 60 (hoje é possível que só “valha” 2!) – já se fala em lançar notas em ziliões (?), notas com 60 zeros…
Em termos políticos, entre o ZANU-PF e o seu líder o Presidente Robert Mugabe, líder histórico da independência, e o MDC e o seu líder Morgan Tsvangirai, o impasse é total. A última ronda de negociações começada dia 19, ainda eu lá estava, terminou em mais um rotundo fracasso.
Em termos humanos o resultado é, como se depreende de tudo o que já expus, uma tragédia. Mas como o Zimbabué não representa nenhum interesse vital para a liderança global, nem em termos geoestratégicos nem comerciais (petróleo, coltan, urânio, diamantes…), a dança macabra para as suas populações vai poder continuar…
Espero que a nova liderança nos EUA se empenhe aqui, como na Região dos Grandes Lagos, na Somália ou no Darfur, na resolução desta catástrofe humana. Para que tal resulte será necessário, nomeadamente, dar ao Senhor Mugabe a garantia que ele não vai acabar a sua vida como um cão com sarna… como aconteceu, por exemplo no Zaire, com o Mobutu que, após ter bem servido a quem mandava, foi descartado sem dó nem piedade, ainda que padecendo de um cancro em fase terminal na próstata (salve-se a honra de Hassan II de Marrocos que o acolheu para morrer), em nome das cínicas relações e dos espúrios interesses da “real” diplomacia internacional…
É neste cenário que a AMI partirá muito em breve para prestar auxílio humanitário na Diocese de Gokwe, com cerca de 600 mil pessoas, a uns 300 km de Harare… É essa a sua missão.


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